quarta-feira, 31 de março de 2010

Tião da Areia e das fábulas

50 BRAVOS CANDANGOS » Do Correio Braziliense

Sebastião de Azevedo Rodrigues é o fundador da cidade de São Sebastião. Mais que isso, destaca-se como contador de histórias, um mestre na arte de viver com os fracassos e as vitórias, em igualdade de condições
Tião com São Sebastião ao fundo
Conceição Freitas

Tudo em Tião Areia vira fábula. Seria um homem amargo, se ficasse agarrado aos fracassos. Seria arrogante, se carregasse no peito as honras já recebidas. Mas ele nunca se desgruda de si mesmo, de uma genuína fé na vida e de um jeito aparentemente bronco, que esconde uma sabedoria interiorana inesgotável. O mineiro Sebastião de Azevedo Rodrigues, 66 anos, é o fundador de São Sebastião, dá nome a uma praça e debulha — basta pedir — uma longa história feita de muitas pequenas historietas sobre um lugar que se chamava Fazenda Papuda e que ele transformou, com a ajuda da comunidade, numa cidade- satélite pobre, derramada num vale entre serras, que faz vizinhança com condomínios de classe média e com a Papuda propriamente dita.

A fábula começou quando o menino Tião, nascido em Lagoa Formosa, Minas Gerais, ficou órfão, e o tio decidiu cuidar dos sobrinhos em outra cidade. Ele foi o único que não quis ir: preferiu ficar tomando conta da mãe, Maria, mulher muito bonita e namoradeira. “Teve uma vez que fui fazer as contas dos namorados dela. Contei nove.” O pai, comerciante e agricultor, havia deixado alguma herança para a viúva, mas ela perdeu tudo nas festas que fazia em casa. “Eu via aquele movimento, sabia que não estava certo, mas não tinha controle pra poder aconselhar minha mãe. As coisas foram se acabando, se acabando e eu comecei a trabalhar de servente de pedreiro, de tocador de gado.”

Deu-se então que Tião ouviu um caminhoneiro convocando peões para trabalharem nas obras da futura capital. Aos 15 anos, o adolescente não sabia do que se tratava, moveu-se apenas pela necessidade de ganhar dinheiro para sustentar a si e à mãe. “O homem não queria me trazer porque eu era muito novo. Eu conversava demais, era muito desenrolado. Mas atentei tanto, adulei tanto esse homem até na hora de ele sair que ele deixou eu vir.” Era maio de 1959. Os homens que subiram na carroceria do caminhão tinham destino certo: viriam trabalhar nas olarias que já estavam instaladas na Fazenda Papuda. Ao mais novo deles, Tião, coube a tarefa de tirar areia do Córrego Taboquinha.

Logo surgiu uma pequena complicação. Naquela leva de operários, havia sete chamados Sebastião. “Ficava muito difícil trabalhar tudo junto. Era chamar um e o outro olhar. Então cada um de nós ganhou um apelido. O que cortava a lenha para os fornos era o Tião da Lenha. O que arrancava o barro, o Tião Barreiro. O que queimava os tijolos era o Tião Queimador”. O Tião Areia passava o dia no córrego, tirando a matéria-prima com a pá, pondo em carrinho de mão e levando barranco acima até o carroção.

Ascensão e queda
Tião Areia conheceu dona Papuda, dona da fazenda de mesmo nome, mulher de longos cabelos brancos, corcunda e que tinha bócio. “Era uma sinhá”, ele diz. Na fazenda, havia instrumentos de castigo de escravos. “Eles falam que era só de negro, mas não era só de negro, não. Branco também sofria. Eu vi roda d’água de bater em negro. Conheci tudo funcionando. O rego d’água correndo formava a roda, que rodava outra roda e na frente tinha umas correias pregadas nela. Ela saía rodando e a peia comia em que estivesse amarrado lá na frente.”

Nos primeiros anos de Brasília, Tião trabalhou na areia. Depois, passou para as olarias. Logo começou a comprar as que estavam falidas e não muito tempo depois começou a fazer fortuna. Mas uma doença de Chagas o fez esperar a morte (corpo inteiramente inchado) e transferir seus bens para a ex-mulher, para os oito filhos e para gente que ele conhecia e que não conhecia, é o que ele conta. A doença de Tião Areia é outra fábula: desenganado pela medicina, buscou a ajuda de um velho raizeiro, seu Olívio, que, com alquimias feitas de sumos e chás de plantas do cerrado, curou o quase morto. “Só que teve um problema. Depois que eu doei tudo, eu não morri.”

O contador de histórias de olhos cor-de-mel e sorriso de dentes de ouro conta que ficou rico, ficou pobre, rico e pobre, quatro ou cinco vezes e que agora está melhorando de novo. Nesse meio tempo, ajudou a transformar a velha Fazenda Papuda, desapropriada com a construção de Brasília, numa agrovila e depois numa cidade-satélite. Primeiro prefeito comunitário da vila, Tião Areia acabou, de certo modo, inspirando o nome da nova cidade.

“A gente sempre foi muito discriminado, desde o tempo em que ia a pé daqui até a Cidade Livre comprar mantimentos. Nós éramos muito feios, andávamos muito mal-arrumado e, quando dizíamos que vínhamos pra Papuda, ninguém queria trazer a gente.” Com o tempo e a chegada de novos moradores, a comunidade começou a pensar em se desvincular de nome tão pesado, Papuda. “Teve uma votação. Eu nem conhecia o tal de dicionário, mas sei que eles tiraram os nomes de lá. Foi um dia inteiro votando. Tinha gente que queria Sombra da Serra, porque São Sebastião é rodeado de serra. Tinha gente que queria o nome de Eucaliptal, nem sei se esse nome tem no dicionário.” Depois de um dia inteiro de votação, alguém sugeriu o nome de São Sebastião, em homenagem ao padroeiro da antiga capital, o Rio de Janeiro, e ao fundador da cidade, o Tião Areia.

Homenagem
Na semana passada, Sebastião de Azevedo Rodrigues ganhou o título de Cidadão Honorário de Brasília, concedido pela Câmara Legislativa. Ele mostra as fotos da solenidade. Tião num terno preto, um tanto menor do que ele, camisa branca e gravata de motivos cinzas. A ex-mulher, Maria, filhos, netos e uma bisneta estavam no plenário. Um assessor da Câmara redigiu o discurso de oito páginas. Tião havia lido e aprovado o texto, mas na hora agá, mudou de ideia, largou as folhas de lado e falou do jeito que sabe falar, um jeito de mineiro-caipira que esconde uma incrível capacidade de seduzir o interlocutor.

E de seduzir as mulheres. A primeira, Maria, tinha 12 anos quando eles começaram a namorar. “Ela era redondinha, inteirinha, era a mais bonita daqui.” Os pais da garota resistiram por algum tempo, mas só por algum tempo. “Naquela época, a gente espichava a idade, né?” Os dois casaram-se quando a noiva estava com 14 anos. Hoje, Maria, 59 anos, cuida dos oito filhos do casal numa casa avarandada ao lado da Praça Tião Areia, no centro de São Sebastião. É outra fonte de sabedoria: “A gente aprende, com o tempo, a valorizar as qualidades das pessoas. Os defeitos, ninguém muda. Nem Deus se mete nos defeitos das pessoas”.

O ex-quatro vezes rico Tião Areia mora hoje, com a segunda ex-mulher e dois filhos, numa modesta casa alugada em São Sebastião. Tem um cargo comissionado, de gerente de Agricultura, na Adminstração do Paranoá. “Me considero um homem rico. Estou com 66 anos, não sinto uma dor de cabeça, não sinto uma dor nas cadeiras. Trabalho tranquilo, sou profissional, rico de amizade. Não tem um cara que tem mais amizade do que eu. Consigo tudo o que desejo de coisa boa. Durmo bem, como bem. Com ou sem dinheiro, pra mim é tudo de um jeito só.”

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